[Crítica] Drácula (Netflix): Do deleite ao deslize

"Não suporto um livro ruim. Você suporta? [...] É um compromisso. Um contrato entre o autor e o leitor. E preciso ser conquistado desde o começo. Afinal, não tenho todo tempo do mundo..."

O livro clássico e os desafios de adaptação


Acabo de ler o livro de Bram Stoker, publicado em 1897, e em seguida já iniciei a série. Como fã do gênero, não preciso nem falar o quanto esse personagem é um ícone e como a obra de Stoker influenciou direta e indiretamente tantas outras obras, mas sendo sincero e direto, o livro possui uma história rasa e bem aquém de sua grandiosa tradição. Eu conseguiria escrever um resumo em menos de 20 linhas sobre todos seus atos, sem a necessidade de pular alguma parte ou subtrama, tamanha superficialidade.


Justamente por isso, "Drácula" é uma história que, pra ser adaptada (seja em formato de filme ou série), inevitavelmente seria necessário acrescentar outros elementos. Talvez isso explique o porquê das histórias de vampiros possuírem tantos paradigmas em constante mudança. Mas entre entender como se mata um vampiro, se ele gosta ou não de crucifixo, se ele pode andar à luz do sol, ou se ele não gosta de sopa de alho, a questão é conseguir adaptar uma história mantendo a sua ESSÊNCIA. Isso sim, acredito ser bem importante.

Netflix e BBC One

Essa série já é curiosa por ter 3 "episódios" com 1 hora e 30 minutos de duração cada, fugindo bastante do que seria um "padrão". Pra mim, está mais pra um filme ENORME dividido em 3 partes. E que filme!

As 2 primeiras partes ("episódios") é um deleite. Design de produção e fotografia me fizeram assistir dando pausas, pra conseguir contemplar melhor a beleza de todas as cenas. Roteiro adaptado riquíssimo, cheio de referências e diálogos intrigantes, que me fizeram ficar na ponta do sofá em alguns momentos. A religião (assim como no livro) também é abordada na trama. A fé, a falta de fé, o sincretismo religioso e suas superstições, a luta do bem contra o mal e o que se diz respeito às suas representações. 

Claes Bang como Conde Drácula arranca suspiros (e arrepios). Ouso dizer que ele entregou o "Drácula perfeito". Com a contribuição de uma direção cirúrgica, um roteiro inteligente e uma mistura inspiradora de gerações, ele conseguiu entrar no personagem e encarnar o sarcasmo, a ironia, a elegância, a sedução, o profano e o diabólico. E a química em cena com Dolly Wells (Agatha) elevou ainda mais toda essa obra.


"Sangue é vidas"


Claes Bang e Dolly Wells em cena de Drácula (Netflix)

Temos aqui o que seria a essência. "As Regras das Trevas" e "Sangue a Bordo" (as 2 primeiras partes/episódios) são uma obra-prima. Resgatam fielmente detalhes do livro e o que acrescenta, faz de forma sublime e coerente, mesmo que diferente e contemporânea, "corrigindo" com caneta esferográfica vermelha o machismo perpetuado nas páginas de Stoker. O figurino acompanha o estilo assertivo da produção, e a maquiagem e o gore (e muito gore!) mostrando o
porquê a série é para maiores de 16 anos.

O deslize em seu último episódio "apócrifo"


Depois de tudo, foi difícil não se decepcionar com sua 3ª e última parte. "Bússola Sombria" não chega a ser ruim e possui momentos bem interessantes, mas é infeliz com alguns detalhes que acabam pesando bastante. É um episódio que deveria ser considerado o "apócrifo" de uma grande obra e que talvez nem deveria ter existido.

O problema não foi unir a modernidade com um personagem ancestral, isso inclusive rendeu momentos pra lá de hilários (volto a elogiar a criatividade do roteiro aqui), mas parece que existe uma "maldição" nessa junção de períodos envolvendo produções com o Drácula. Sempre que tentam trazê-lo para um período moderno, dá ruim. E não foi diferente com essa série.

Drácula pedindo a senha do wi-fi para jogar "Castlevania"

O humor rouba o espaço do sombrio e a tecnologia invade a ambientação medieval sem cair no cafona ou descaracterizar o lado dark do Conde Drácula, mas a necessidade de quebrar regras fez com que o roteiro cometesse deslizes muito prejudiciais a todo conjunto da obra. A fusão de personagens passado-presente é um deles, e com esforço (talvez bebendo algo que não seja sangue), conseguimos engolir o que nos é apresentado nesse desfecho. Ou, simplesmente acabamos fingindo que ele nunca existiu para profanar o que havia sido construído de forma tão sublime desde o início.
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1ª e 2ª parte/episódio:
★★★★★ (Obra-prima | Nota: 10/10)

3ª parte/episódio:
★★ (Regular | Nota: 5/10)
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Média | Série: ★★★★ (Ótimo | Nota: 8/10)

*Visto em áudio original: inglês | Legenda: PT-BR