Antes de falar sobre “O Exorcista: O Devoto” (2023) é inevitável levantar alguns pontos relacionados a “apoteose” que cerca o clássico de 1973 de William Friedkin. Sempre quando um filme carrega esse peso de ser uma obra intocável, já podemos colocar um pé atrás quanto a opinião do público e da crítica. Não adianta. Passa geração, entra geração, seja na era dos remakes ou dos reboots, sempre quando um clássico estiver prestes a ser avivado nas telas, pisarão em ovos.
Mesmo com remakes de qualidade elevada – “O Massacre da Serra Elétrica” (2003), “O Chamado” (2002), "Suspiria: A Dança do Medo" (2018) – ou de qualidade até aceitável – “Horror em Amityville” (2005), “A Casa de Cera” (2005), “Sexta-Feira 13” (2009) –, sempre um conservadorismo aliado a uma alta expectativa pelo frescor acabará dificultando o filme de conseguir agradar a todos.
Os reboots não fogem dessas exigências, e a possibilidade de desagradar são ainda maiores do que os remakes. Além de trazerem a liberdade de “reiniciar” um clássico que, para muitos, deveria ser intocável, ele também precisa se ligar ao original de alguma forma e fazer isso respeitosamente. Seja através de fanservices ou por trazer personagens atemporais de volta. Tudo no meio de uma história totalmente nova, com um elenco que busca estabelecer o seu próprio carisma e ligação com o público.
Após as bombas, veio a paz
Dei uma chance para David Gordon Green e fui assistir “O Exorcista: O Devoto” (2023) só agora por muitos motivos. Primeiro que, mesmo o gênero terror sendo um dos meus favoritos, não gosto de filmes de exorcismos. Pra mim é uma temática que passou a ficar batida, com o mesmo padrão de cabeças girando, CGI contorcionista e lentes de contato que não assustam mais como nos anos 70.
Com a diferença de filmes como "O Exorcismo" (2024) e “O Babadook” (2014), que elevam o tema para outro ponto de vista: o psicológico, nem sempre essa linha tênue em paralelo ao sobrenatural é utilizada de forma inteligente. E convenhamos que quase TODO FILME de exorcismo passa previamente por uma consulta no psiquiatra.
Enquanto a Regan não estava levitando e falando uma língua morta – o latim – não acreditaram que ela estava realmente possuída por um demônio. Uma precaução sensata e real, que o Vaticano procede de forma rigorosa, e que não poderia ficar de fora da ficção, afinal, a graça do gênero terror é fazer algo “baseado em fatos reais”.
Nesse reboot dirigido por Green, através de um roteiro coescrito com Peter Sattler, o ponto de dúvida "ciência x paranormal" é levantado logo com seu subtítulo – “Believer” (“Crente” em tradução literal, “O Devoto” em tradução livre aqui no Brasil) –, indo muito além de um quarto de hospital e utilizando-se de várias religiões que possam resolver uma determinada urgência. Desde as que invocam espíritos, até aquelas que, de alguma forma, expulsam.
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O demônio Pazuzu parece estar novamente sabendo do caso |
A questão é: o filme não é ruim como falaram. Por incrível que pareça. Porém, ele é polêmico. E precisamos saber diferenciar muito bem essas duas coisas. O roteiro, juntamente da edição, consegue estruturar e desenvolver uma história muito boa, que estabelece conexões importantes entre seu prólogo e algumas surpresas de seu desfecho, dando uma carga emocional mais forte e fazendo com que tudo saia do que seria superficial. Então, não se enganem com o marketing pouco convidativo desse filme.
Exorcismo ecumênico?
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Esse grupo de oração tá diferente |
Mesmo com vários clichês, a direção consegue desviar nossa atenção para outro ponto, carregando praticamente toda a história no seguinte questionamento: como conseguir ajudar duas garotinhas que estavam desaparecidas, ressurgiram possuídas, e agora estão sofrendo muito? Já que a medicina não consegue explicar, recorremos então à vizinhança, com católicos, protestantes e adeptos de religiões africanas, TODOS reunidos no mesmo lugar, quando de repente, veio do Céu um som, como de um Vento Impetuoso...(não, péra) numa espécie de “exorcismo ecumênico”, já que o rito que seria o "oficial" não pôde comparecer por questões burocráticas. Nesse ponto do filme, lembrei bastante da energia caótica de “Halloween Kills” (2021), não posso negar.
Essa ideia na cabeça de David Gordon Green parece persistente e continuou desnecessária, mas o que me impressionou dessa vez foi a forma que ele conseguiu sustentar e conduzir esse absurdo aglomerado, sem que tudo virasse uma tremenda bagunça ou acabasse caindo no cômico.
Assisti com o áudio original, não sei como ficou a dublagem desse filme, mas a cena do exorcismo ficou "ok", e o interessante na verdade foi a forma que tudo foi construído até chegar esse momento. Algumas cenas conseguem nos deixar tensos pelo comportamento estranho das garotas e um jump scare me fez xingar o capeta e a mãe dele. Espero ser absolvido por isso e que tudo corra bem.
Diferente do clássico, onde todos olhavam para as várias formas horrendas de profanação em uma criança possuída, aqui, nossos olhos ficam voltados para os personagens ao redor. Como cada um se comporta em meio a suas experiências (ou inexperiências) em lidar com o sobrenatural e suas acusações.
A participação especialíssima das atrizes Ellen Burstyn e Linda Blair é de uma profundidade que chega a arrepiar (e isso não é apenas comentário emocionado de fã). Realmente o roteiro conseguiu ter uma ideia criativa e ousada, em como inserir esses personagens clássicos de forma densa, dramática e que tivesse um peso emocional realmente relevante. É lindo. Trágico. Mas que beirou o épico.
Nem vou falar sobre a icônica trilha sonora, que assim como foi no reboot de "Halloween" (2018), souberam utilizar de forma ponderada e no timing correto. Fruto de uma ótima edição, que também conseguiu alinhar e “enxugar” a história, fazendo suas 2 horas de duração passarem despercebidas.
O terror que virou “terror religioso”
Talvez o que fez muitos considerarem “O Exorcista: O Devoto” (2023) uma blasfêmia cinematográfica, foram suas ideias polêmicas. Antes ele tivesse ficado apenas em seu monólogo filosófico, com discurso motivacional. Sua base de história é toda trabalhada no embate fé x ceticismo, entre crer ou não no sobrenatural. Não que isso não seja levantado em vários filmes de exorcismo, o problema foi a forma que se deu aqui.
Envolvendo várias religiões diferentes, o enredo ainda conseguiu espaço para beirar o que muitos chamam de proselitismo. Lembrando que não vejo problema algum um filme de terror ser de fato religioso – ou seja, com conteúdo de teor doutrinário e propagador de uma fé, como o visto em “A Libertação” (2024) por exemplo, lançado na Netflix, ou até mesmo "Nefarious" (2023), com seu partidarismo político –, mas é bacana quando isso está assumidamente dentro de sua proposta. E não sei se era esse o caso. "O Exorcista" (1973) contém religião, mas não é religioso.
Independente dessa falta de sensibilidade por se apegar demais a explicações, “O Exorcista: O Devoto” (2023) acabou tendo outro extremo e sendo uma grande surpresa em meio a tantas críticas negativas. Após "Halloween Kills" (2021) e "Halloween Ends" (2022) – duas bombas que saíram de suas mãos – David Gordon Green conseguiu me fisgar pela direção daquilo que não mostrou demais, apresentando alguns elementos bizarros e me conduzindo por relances onde fui imerso no êxtase de uma clássica trilha sonora.
O impacto emocional nesse reboot é outro. O drama acaba sendo maior que o terror, e uma terrível dúvida circunstancial como a maior astúcia do diabo para ganhar uma batalha que é humana e passível de tantos erros apresentando esse gatilho: a escolha. Não que no filme de 1973 não houvesse o drama, até porque, não tem como comparar, mas aqui, David Gordon Green conseguiu trazer a obra do destino como uma explosiva catarse.
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★★★ (Muito bom | Nota: 7/10)
*Visto em áudio original: Inglês | Legenda: PT-BR